CADE O CHICO?


CADÊ O CHICO?
CÁLICE
Chico Buarque de Holanda
RALE-SE
Net 7 Mares
Pai, afasta de mim esse cálice;
Afasta de mim esse cálice;
Afasta de mim esse cálice,
De vinho tinto de sangue.
Pai, afasta de mim esse “Rale-se",
Afasta de mim esse “Rale-se”,
Afasta de mim esse “Rale-se”
Pra que me esfrie o sangue.
Como beber dessa bebida amarga,
Tragar a dor, engolir a labuta;
Mesmo calada a boca, resta o peito;
Silêncio, na cidade, não se escuta.

Eu não suporto o rito salafrário
Desses impostos na minha labuta;
São quatro meses que, do meu proveito,
São desviados pros filhos da "outra".
De que me vale ser filho da santa...
Melhor seria ser filho da outra,
Outra realidade menos morta,
Tanta mentira, tanta força bruta.

De que me vale essa crença tanta
No meu país, se a realidade é outra:
Pouca vergonha que, aqui, anda à solta
Nessa quadrilha do Poder que furta.
Como é difícil acordar calado,
Se, na calada da noite, eu me dano;
Quero lançar um grito desumano,
Que é uma maneira de ser escutado.

Como é difícil tolerar o errado,
Ver meu País entrando pelo cano...
STF desacreditado,
Que só com os pobres é draconiano.
Esse silêncio todo me atordoa;
Atordoado, eu permaneço atento
Na arquibancada, pra a qualquer momento,
Ver emergir o monstro da lagoa.

Nesse governo de gente à-toa,
O que vigora é o “quanto por cento”;
Pouco adianta eu ficar atento,
A roubalheira corre numa boa.
De muito gorda, a porca já não anda;
De muito usada, a faca já não corta;
Como é difícil, pai, abrir a porta,
Essa palavra presa na garganta.

Neste país, do qual estou enojado,
O mais correto é o de vida torta,
Que rouba, engana e que só se importa
Em comprar voto por alguns trocados
Com esse pileque homérico no mundo,
De que adianta ter boa vontade;
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade.

Que configuram esmola covarde
A ocultar a torpe vilania
De um regime em que a democracia
É baseada em vã caridade.
Talvez o mundo não seja pequeno,
Nem seja a vida um fato consumado.
Quero inventar o meu próprio pecado,
Quero morrer do meu próprio veneno.


De certo, a honra é algo pequeno
Nesse país de um povo acomodado,
Onde o que era crime consumado
Passou a ser direito obsceno.
Quero perder de vez tua cabeça,
Minha cabeça perder teu juízo;
Quero cheirar fumaça de óleo diesel,
Me embriagar, até que alguém me esqueça.

Estou perdendo, Pai, minha cabeça,
Porque, em outras, já não há juízo;
E, sem cabeça, não terei o guizo
Que, em meu pescoço, querem que aconteça.

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